A Vida nas Trincheiras

 

 
Para cima

 

O Treino do CEP em França e Inglaterra

 

A Caminho da Frente

 

As tropas portuguesas seguiam da zona de desembarque e acantonamento para a linha da frente por via férrea para a zona de guerra. Após passar a zona de Amiens o cenário muda pela pela predominância de fardas militares. Acampamentos militares, hospitais, e perto de Étaples começam a ser vistos os primeiros cemitérios. Em Hesdigneul as tropas faziam o transbordo de comboios civis para comboios militares de transporte de munições ou de feridos, que os levavam até St. Omer1.

 

Nas memórias do Tenente Barros Bastos BI 23 as tropas desembarcadas partiram de Brest no dia 26 de Fevereiro de 1917 em direcção a Aire-sur-la-Lys, onde chegaram três dias depois a 1 de Março. Um dia antes de chegar já se ouvia o troar dos canhões ao longe. Depois de chegar a Aire-sur-la-Lys ainda se deslocaram pela via ordinária até Euquin-les-Mines onde ficaram acantonados. Algumas semanas depois o BI 23 passou a estar acantonado em Ecques(34).  

 

 

A Distribuição das Tropas

 

Na linha da frente encontrava-se a infantaria que ocupavam as trincheiras e os apoios desde Fleurbaix a Festubert, passando por Rua de Bois, Fanquissart, Neuve-Chapelle e Ferme du Bois. Segue em segunda linha a artilharia de campanha e depois os os quartéis-generais de Brigada e as ambulâncias da frente.

 

Mais à retaguarda, , perto de Lestrem e Lagorgue os quartéis-generais de Divisão e serviços de apoio logístico e administrativos. Em Merville o Hospital de Sangue nº1, St. Venaint o quartel-general do C.E.P., e Marthes, Ecques , Dohen e Fauquembergues as ambulâncias de retaguarda. É nestas zonas que os Batalhões vêm para descanso na retaguarda, "recoca", ou preparação para a ida para as trincheiras2.

 

O Batalhão de Infantaria 23 entrou pela primeira vez nas trincheiras a 7 de Maio de 1917. Primeiro estivaram parados em Levantie e só após o bombardeamento alemão que aconteceu pelas 23 horas é que entraram nas trincheiras no sector de Neuve-Chapelle, pela Winchester Trench, onde se encontrava o Regimento de York and Lancaster. Em Agosto de 1917 o BI23 encontrava-se no subsector 1 do sector Neuve-Chapelle, onde guarneciam a linha de reserva e o reduto Sign Post(35).

 

Em Novembro de 1917 o BI23 esteve em repouso em Mametz, de onde partiu novamente para as trincheiras, desta vez para o Sector de Ferme du Bois(36).

 

A Linha da Frente - Front

 

Existia uma hierarquização do perigo de zona para zona, assim desde a linha da frente às bases da retaguarda, existia o que se poderá equivaler aos os sete círculos da guerra da "Divina Comédia", mas em que os eleitos estão no inferno. 

Na retaguarda a vida era triste e monótona, longe de tudo menos das lembranças longínquas que enchiam de tédio os soldados e lhes  destruía a vontade, na época a chamavam "zona neutra".

 

O caminhar da retaguarda para as linhas da frente (Linha de Apoio, Linha B e Linha A) é como atravessar todos os círculos da agonia até entrar nas planícies da morte. Casa destruídas, espigões de madeira fracturados em ruas cemitérios, campos eriçados de arame farpado, panos de paredes carcomidas, rebentamentos de granadas de artilharia, a constante rasoira terrível das metralhadoras e a terra esventra-se em rasgões.   

 

No "front" junto ao parapeito (Linha A), o perigo fustigava os nervos e a vida exaltava todas as faculdades de sentir. Escapava-se à morte com algumas chicotadas na medula, e vem a vontade de viver. Nas trincheiras "cava-se" e "mergulha-se" no chão. As trincheiras eram um sistema de fossos rasgados no chão até à altura dum homem em três linhas paralelas: Linha de A, Linha B e Linha de Apoio, ziguezagueando e entreunindo-se até aos parapeitos sobre a "terra de ninguém".  Nos fossos abriam-se lateralmente cavernas, uma espécie de silos e as granadas e a chuva revolviam a terra transformando-a  em lama e água. Tudo é lodo e miséria, a esperança de vida assenta apenas no acaso.

 

Os homens transformam-se com o passar do tempo, ganham com o tempo uma fisionomia especial, tanto mais dura quanto mais perto do inimigo. A vizinhança da morte, as longas vigílias, o sol, o frio envelhecem a a expressão, dissipam a juventude e transformam-nos em velhos. Na faixa estreita das trincheiras vive-se junto à morte, no meio de balas e granadas, que são cegas. Os vivos têm de viver em promiscuidade com os mortos, mais do que isso, com as mutilações dos cadáveres.  O cheiro é por vezes nauseabundo e o fedor a carne putrefacta paira no ar. O chão está tingido de sangue3.

 

As trincheiras são uma grande cova, onde se aprende o ofício de morto. Sim, uma cova muito longa, tão longa que nem se mede com a fita. A unidade métrica nas trincheiras são os sete palmos de terra. A primeira linha, com muitos soldados, é uma espécie de vala comum5

 

O Horizonte de destruição e as Imagens de Cristo e Nossa Senhora

 

 

Junto à zona da linha da frente, em Neuve-Chapelle, encontrava-se um calvário de pé. Os combates tinham abarrotado os cemitérios mais próximos. Muitos soldados tinham caído por terra, com o revolver do chão pelas granadas de artilharia, e ficado sepultados ao acaso, anónimos, no lugar onde tombaram, mas o Cristo ficou intacto.

 

No final da tarde quando as sombras deixam de se sentir, o Cristo do calvário intacto, erguido no alto do seu madeiro domina a paisagem e assume proporções de revelação divina. Cristo estende os braços e espalma as mãos sangrentas para o além, sobre toda a terra do martírio e dos combates. No chão escondem-se a turba martirizada, a multidão dolorosa e redentora, o soldado da grande guerra4

 

Os Raids

 

Sob a designação de raids englobavam-se todas as operações militares executadas pela infantaria no front contra o inimigo, em acções de trincheira a trincheira, e para a execução destes existia o serviço de patrulhas. As patrulhas eram dimensionadas com numero de homens e equipamento utilizado conforme o objectivo. Assim, para espiar as linhas inimigas, atravessando a "Terra de Ninguém" rastejando até o mais próximo possível do parapeito inimigo, "Patrulhas de Escuta", utilizavam-se dois homens. Para percorrer a "Terra de Ninguém" como simples elemento de segurança, "Patrulha de Segurança" utilizava-se uma dúzia de soldados. E para destruir as defesas de arame farpado inimigo e fazer atrito sobre as linhas inimigas, "Patrulha Ofensiva", utilizava-se cerca de 30 a 40 homens e levava-se uma metralhadora. Só em 1918 é que se organizaram "patrulhas" com efectivos ao nível de companhia, aproximadamente 200 homens. (21)

 

Estas patrulhas iam à "Terra de Ninguém" ligadas o seu parapeito através de um arame guia que lhes servia para comunicar, através de esticões e quando deixados no terreno também serviam para que em futuras operações se tivesse alguma indicação sobre passagens possível entre os arames farpados inimigos.  Em 1918, quando as "Patrulhas Ofensivas" começaram a sser organizadas com a dimensão de companhia, passaram a integrar telefonistas com ligação constante com um posto de SOS da 1ª Linha.

 

Porque as operações de patrulha eram sempre de noite, e quando possível aproveitando as noites escuras, havia o cuidado de efectuar camuflagens, o que implicava pintar a cara e mãos de preto com graxa ou carvão e nas noites de neve vestir um impermeável branco que os confundia com ela. Nas trincheiras eram conhecidos pelos fatos à "pierrot". (22)

 

Se desde a chegada às linhas da frente em 1917 que as unidades eram atacadas por bombardeamentos regulares e sofriam casualmente raids alemães, mas desde Março de 1918, a Frente Ocidental apresentava uma actividade cada vez mais intensa, tendo existido um raid alemão sobre as nossas linhas que foi respondido com um raid a 12 de Março, seguindo-se outros raids alemães e portugueses em consecutivas respostas de uns e de outros. Nessa altura encontrava-se na zona de combate a 3ª e 6ª Brigada, que foi suportando e fazendo os sucessivos raids. Mas o perigo não se cingia apenas àqueles poucos quilómetros da frente de combate, uma vez que a artilharia alemã, suportada por canhões de 240mm, chegava a bombardear até 30 km na retaguarda, chegando a atingir os comandos divisionais e até o comando do CEP. (27)

 

 

Raids portugueses às linhas alemãs

 

Américo Olavo (Capitão de Infantaria, 2º Regimento de Infantaria, comandante de Companhia)

 

"Para os que não conhecem assuntos militares, eu direi que raid é uma operação de detalhe, misto de corrida e de golpe de mão sobre a posição do adversário, com intenção de ali colher prisioneiros e material, destruindo ao mesmo tempo as suas instalações e abrigo. É sempre uma operação executada n'um espaço de tempo limitado, feita portanto com rapidez, com decisão, com desembaraço."

 

" A incursão nas linhas inimigas faz-se em geral depois d'uma rápida preparação pela artilharia e morteiros que force a guarnição do ponto a atacar, a abrigar-se, de forma a serem os parapeitos assaltados com o mínimo de perdas possível. As linhas devem ser atingidas antes que o inimigo se aperceba do ponto em que a ruptura se produz e por isso se faz muitas vezes uma diversão, bombardeando seja com artilharia, seja com morteiros, não só o ponto a atingir como as trincheiras laterais e ainda pontos d'ali afastados, de forma que o inimigo, não possa determinar o local preciso em que queremos realizar as nossas intenções."

 

"Depois a nossa artilharia, isola uma certa zona de terreno, batendo todas as trincheiras de comunicação que ali dão acesso, e as metralhadoras pesadas colaboram, incidindo sobre os cruzamentos em que o inimigo possa procurar passar. Chama-se a isto «formar a caixa». E é dentro da caixa que a nossa pesquisa ou a nossa luta tem lugar" (14)

 

Um problema que se colocava às forças que executavam o raid era o regresso às suas linhas em noites de neblina ou encobertas, que levavam a que muitos soldados ficassem horas seguidas na "Terra de Ninguém" à espera de um raio de luar, ou uma abertura no céu que lhes permitisse ver as estrelas para se orientarem. Por vezes perdiam-se e iam cair nas linhas inimigas. O Capitão Américo Olavo preferia executar os raids em noites de lua cheia, porque lhe dava melhor visão ao perto e dificultava a visão inimiga à distância.

 

O ataque efectuado pelo BI 2 com o efectivo de uma companhia, em 3 de Abril de 1918, às linhas inimigas foi organizado em três colunas distanciadas entre elas de cerca de 100m, compostas por 60 homens cada. À direita o Alferes Lopes Praça, ao centro o Alferes Martins Ferreira e à esquerda o Alferes Bello. Com a coluna do centro seguia o Capitão Américo Olavo, com os telefonistas com ligação constante com um posto de SOS da 1ª Linha. À frente de cada coluna seguia um grupo de quatro soldados de engenharia com torpedos para abrirem ruas nos arames farpados inimigos e bombas para destruírem os abrigos que encontrassem. 

 

Depois de se encontrarem colocados na "Terra de Ninguém" ficaram a aguardar pelo fogo de artilharia para preparar "a caixa". Quando começou a barragem de artilharia foram avançando colados a esta sempre a avançar em direcção ao inimigo. Chega então o momento em que os soldados de engenharia rebentam os arames farpados que protegem a 1ª Linha inimiga e é dado o assalto. A linha inimiga é revistada e não são encontrados inimigos, terão fugido e deixado dois abrigos em cimento abandonados, que a engenharia faz destruir.

 

O Capitão Américo Olavo deu ordem para as colunas laterais retirarem assim como metade dos homens da sua coluna, ficando com ele apenas o Alferes Martins Ferreira, o Alferes Costa Alemão de Engenharia e o Alferes Silvino Saraiva de Morteiros que se tinham oferecido para o acompanhar, e 30 dos seus homens, para proteger a retirada. Entretanto, a artilharia alemã começa a disparar sobre "a caixa" e atinge o Alferes Martins Ferreira que fica ferido em dois sítios. A retirada da linha alemã e a passagem pela "Terra de Ninguém" foi penosa e sempre perseguida pela artilharia inimiga. No final não regressaram 8 homens. (16)

 

Martins Ferreira faz referencia à acção do Capitão Américo Olavo, em 3 de Abril de 1918, no sector de Chapigny, indicando que estava uma noite escura e chuvosa e que o avanço chegou até à 2ª Linha inimiga, onde destruíram as tabuletas e os abrigos. As linhas inimigas foram abandonadas durante o ataque português. Na retirada os alemães bombardearam a "caixa" que cobria a retirada portuguesa, tendo ficado desaparecidos 8 soldados e feridos 1 oficial e 13 praças. (18)

 

Jaime Cortesão (Capitão-médico, 23º Regimento de Infantaria)

 

Nas suas memórias, remontando a 12 de Março de 1918, escreve:"...Ai! adeus, acabaram-se os dias... Já não há uma hora de sossego, desde os começos de Março. E no receio ou no preparo duma ofensiva — vão lá saber... a gente nunca sabe....— torna-se mais densa a infantaria junto às linhas." (Cortesão 1919:157). "...fui avisado pelo ajudante Zé Ferreira que o general Gomes da Costa queria alguns boches e escolhera a minha companhia para essa operação...", "Às duas da madrugada marchamos pela trincheira para os pontos de saída. E cautelosos, em silêncio, rastejando, cortamos a terra de ninguém, até que às duas e quarenta e cinco estamos em linha a 25 metros do boche, devidamente escalonados em grupos por ordem de execução das missões." (Cortesão 1919:159).

 

"Às três, a artilharia pesada começa a festa. O boche mostra-se inquieto. Gasta muitos very-lights. E bate toda a terra de ninguém, ao acaso, com rajadas consecutivas de metralhadoras. E à minha frente, ali a dois passos, vejo os boches, sondando o chão, de pé no parapeito, inclinando-se desconfiados. A gente reteve o respirar, mas parece-nos, tão próximos os vemos, que até as pancadas do coração eles podem ouvir." ... "Às quatro e cinquenta e cinco a nossa artilharia de campanha rompe um fogo infernal, desarrumando a casa ao nosso Fritz, por completo. Chegou a hora. Só mais cinco minutos. Às cinco horas temos que abalar. Meu amigo, estes cinco minutos são terríveis. O boche alumia toda a frente numa profusão fantástica de projécteis iluminantes. As balas das metralhadoras silvam, batem às cegas, à nossa volta." (Cortesão 1919:160).

 

Às cinco termina o fogo de artilharia de apoio e "...Os cento e vinte homens, ao sinal dos alferes, atiram-se ao assalto". Os meus soldados, já na trincha, varrem à frente os boches à baioneta e à granada. Corro a juntar-me a eles. (Cortesão 1919:161). "Alguns soldados correm pelas trinchas de comunicação à linha de suporte, continuar a caça, convidam-se os boches, sãos e feridos, que estão dentro dos abrigos a vir connosco. —Portugal três bonne. Carne on tout de suite. Mas os boches recusam todos com pertinácia" ..."Eu já tinha uma metralhadora e um prisioneiro" ..."agarrado cada qual a um souvenir. A malta veio toda, com 25 feridos ao que me disseram." (Cortesão 1919:162).

 

Hernâni António Cidade (Alferes, 35º Regimento de Infantaria, Comandante de Companhia)

 

Refere o Capitão-médico Jaime Cortesão, em 10 de Novembro de 1917, que "... Vagueio com o meu camarada médico, por entre a turba. Ali perto, a comandar uma companhia, está o Alferes Hernâni Cidade, herói do 14 d'Agosto e um dos poucos que já tem a Cruz de Guerra." O Alferes Hernâni Cidade foi mobilizado em 26 de Outubro de 1916, como cabo, porque sabia ler e escrever. Da sua firmeza e sentido do dever veio a distinguir-se, sobretudo pela sua coragem ao serviço da dignidade humana: em 14 de Agosto de 1917, apenas com três soldados, atravessou "a terra de ninguém", debaixo de fogo, e foi às linhas alemãs buscar os soldados portugueses feitos prisioneiros num raid inimigo.  Ainda, debaixo de fogo "na terra de ninguém", foi buscar um alemão ferido que o traz para as trincheiras portuguesas. Com este acto foi-lhe atribuída a Cruz de Guerra. 6

 

O Alferes Humberto de Almeida nas suas memórias conta-nos o episódio de 14 de Agosto de 1917, que levou à condecoração do Alferes Hernâni Cidade com a Cruz de Guerra. Na madrugada os alemães iniciaram um intenso bombardeamento contínuo do subsector de Neuve-Cahpelle ocupado pelo BI 35, que indicava que iriam iniciar um ataque às nossas linhas. Nesse dia utilizaram inclusive um gás diferente.  Iniciado o ataque foi lançado o SOS, very-light vermelho, que foi respondido com fogo defensivo por parte da nossa artilharia. Os alemães que nos atacaram eram tropas frescas e descansadas que vinham da Rússia que com uma extrema violência conseguiram chgar até à 2ª Linha, onde foram travados. Já retiravam através da "terra de ninguém" para as suas linhas com prisioneiros do BI 35, quando o Alferes Hernâni Cidade saltou da trincheira acompanhado por três soldados e lançaram-se sobre alemães em retirada com os prisioneiros portugueses, que ao verem o Alferes os soldados portugueses prisioneiros atacaram a escolta alemã e prenderam-nos e levando-os agora como prisioneiros para as nossas linhas. Com este acto o Alferes Hernâni Cidade transformou aquilo que poderia ter sido uma derrota numa grandiosa vitória ao libertar perto de uma centena de portugueses.  (14)

 

Numa das suas cartas à família o Capitão Manuel Maia Magalhães, oficial de Cavalaria incorporado no Estado-maior da Base do CEP, indica que "...na noite de 13 para 14 [de Agosto de 1917] os alemães fizeram um forte ataque às nossas trincheiras, com tropas numerosas e especiais para o assalto, mas foram completamente repelidas morrendo muitos d'eles, entre os quais um capitão, um tenente e um alferes alemães. Entre os nossos tornou-se especialmente notável um alferes de infantaria, miliciano, [Hernâni Cidade] que só com 10 homens se atirou para cima de um grande grupo de alemães que levavam alguns homens nossos prisioneiros, e por tal forma falou aos nossos homens e atacou os alemães que salvou todos os nossos prisioneiros, prendeu 6 alemães, matou o tenente e o alferes alemães, e pôs os outros em fuga. E dizem por aí que os milicianos não prestam." (17)

   

 

João Pina de Morais (Tenente, 13º  Regimento de Infantaria, comandante de Batalhão)

 

Relata sobre a execução de uma patrulha em 1917 efectuada por um alferes do seu Batalhão, o qual tinha recebido as instruções no dia anterior. "Patrulha d'oficial, 30 homens, às linhas inimigas. Saída no ponto M.22; H.12. Leva uma metralhadora". Dos homens escolhidos "...havia lá soldadinho, entre os trinta que levei, que conhecia aquilo como a casa dele - são desses que aborrecidos nas noites largas, vão à coca do boche por passa tempo".  (Morais, 1919:60)

 

Chegada a hora "... os soldados estavam ali reunidos onde os parapeitos estavam mais direitos mostrando à luz dos very-lights os rostos sorridentes e o olhar infantil" (Morais, 1919:62) É o avanço em direcção às linhas inimigas. "os very-lights desciam a demorar-me enormemente - e as coisas tinham sombras que se espalmavam tombando, outras que corriam como inundações d'água suja, outras grandes que eu não via até onde chegavam."(Morais, 1919:63). Pondo de parte a bengala, pego na espingarda do ordenança..."e dispara, "um dos soldados que aprofundara já a vista na trincheira inimiga diz-me ao ouvido: - nem boia, meu Alferes!". Avançam sobre a trincheira e ouvem os alemães, começando de imediato uma enorme fuzilaria.   

 

A patrulha termina e ao regressar encontra uma patrulha alemã que estava junto ao arame-farpado da trincheira portuguesa, "... as duas patrulhas fuzilam-se, granadeiram-se, sem se verem, na sombra, na lama". À luz dum very-light, vêem-se os recortes das sombras dos soldados e baionetas dos alemães, que desaparecem para sempre. "Os soldados começam a entrar na nossa trincheira...para a esquerda desenha-se uma figura maior de três soldados - devem segurar algum ferido."(Morais, 1919:65-68)

 

David Magno (Capitão de Infantaria, 13º Regimento de Infantaria, comandante de Batalhão)

 

Relata um acontecimento no Batalhão de Infantaria 23, de Coimbra, em 1917, relativo a um soldado de uma patrulha enviada à "Terra de Ninguém" e não tinha regressado. No dia seguinte um Cabo veio comunicar ao comandante da Companhia que o soldado desaparecido se encontrava morto dentro de uma cratera, junto ao parapeito inimigo. Quando perguntado como o sabia disse: _ "é que eu fui lá ver". "...voltou novamente a busca-lo, com dois maqueiros, desta vez mostrando a maca bem alto e os braçais da Cruz Vermelha. Com estupfacção de todos , alguns alemães ergueram-se ao parapeito e fizeram a continência ao morto até que entrou de novo nas nossas trincheiras, de onde o nobilíssimo gesto foi retribuído." (11)

 

Humberto de Almeida (Alferes de Infantaria, 7º Regimento de Infantaria)

 

Relata o Raid efectuado pelos alemães à 1ª Linha defendida pelo BI 7, em Neuve-Chapelle,   no dia 14 de Setembro de 1917. As tropas alemãs que se encontravam à frente tinham sido rendidas alguns dias atrás e não se sabia qual a identificação deste novo corpo militar alemão. Na madrugada de 14 de Setembro os alemães deram início a um bombardeamento contínuo que indiciava um ataque para breve. O assalto deu-se com a penetração dos alemães na primeira linha e consequente luta corpo-a-corpo. Os homens do BI 7 resistiram e expulsaram os inimigos, dando um exemplo de heroicidade aos "Tommy" que   observavam o combate. Os alemães retiram e deixaram sete prisioneiros e não levaram nenhum. Nesta acção destaca a valentia do Alferes Teixeira do BI 7 durante o combate. (12)

 

Ribeiro de Carvalho (Capitão de Infantaria, 21º Regimento de Infantaria, comandante de Companhia)

 

Martins Ferreira relata-nos o raid executado a 8 de Março de 1918, no sub-sector direito de Ferme du Bois, com um efectivo de uma companhia do BI 21, comandada pelo Capitão António Germano Guedes Ribeiro de Carvalho. O raid foi bem sucedido e alcançou todos os objectivos programados: destruição de abrigos na 2ª Linha alemã, inutilização de um troço de linha de Dacauville, linha de bitola de 60 cm para pequenas locomotivas a vapor que eram utilizadas para transporte e abastecimento do front, fizeram prisioneiros, tomaram material e causaram baixas. (19)

 

Vale de Andrade (Capitão de Infantaria, 14º Regimento de Infantaria, comandante de Companhia)

 

Martins Ferreira relata-nos o raid executado a 19 de Março de 1918, no sector de Neuve-Chapelle, com um efectivo de uma companhia do BI 14, comandada pelo Capitão José Maria Vale de Andrade. O raid foi bem sucedido e alcançou todos os objectivos programados tendo feito prisioneiros, tomado material e causado baixas. (20)

 

Raids alemães às linhas portuguesas

 

Em 23 de Novembro de 1917, na noite em que o Batalhão de Infantaria n.º 1 (BI1), de Lisboa, chegou às linhas, no processo de substituição da 6ª Brigada pela 3ª Brigada no subsector de Fauquissart. Os alrmães fizeram um raid com um efectivo de uma companhia, que se iniciou com um forte bombardeamento sobre a 1ª  e 2ª linhas, linhas de comunicação e comando do Batalhão. O ponto atacado pelos alemães era defendido pela 2ª companhia do BI1, comandada pelo Capitão Manuel Henriques Carreira, coadjuvado pelos Alferes Moniz e Brito. Apesar da violência dos bombardeamentos a 1ª linha manteve-se nos postos e recebeu os inimigos a tiro. Num dos postos um cabo e quatro soldados portugueses chegaram ao corpo-a-corpo tendo matado o oficial alemão e ferindo um soldado que o acompanhava e que acabou por ficar prisioneiro dos portugueses. O ataque alemão acabou por ser repelido com um custo de 6 mortos e 10 feridos na 2ª Companhia do BI1. (26)

 

 

As Noites de Vigília

 

Na primeira linha junto ao parapeito, as noites eram de vigília em silêncio, passada a escutar o que não se conseguia ver. Nas longas noites geladas do Inverno de 1917,  faziam por se manterem quentes, "vivos", fumando cigarros mergulhado a cabeça escondida na trincheira. (23)

 

 

Descrição de um abrigo no Front (primeira linha)

"Acompanhado dum capitão, velho amigo e dum tenente que comandava então a companhia em que eu deveria ficar, dirigi-me trincheira abaixo, em direcção ao abrigo que deveria ocupar com ele e alguns subalternos mais. Era um dug-out, um elefante, de ferro espesso e canelado coberto com sacos de terra, tendo a um e outro lado duas camas e uma ao fundo, que me foi destinada. As camas eram o que há de mais simples: um rectângulo de travessas de madeira a que adaptavam uns pés, feitos de travessas cortadas. Como enxergão, uma teia de arame de fazer capoeiras, que na guerra tem a aplicação de cobrir as passadeiras de fundo, para evitar o escorregão e a queda. E como colchão, mais aproveitável durante o dia que de noite, umas mantas, algumas vezes, raras, estendidas sobre um pouco de palha que o cuidado amigo dum soldado nos vai procurar. Ali ficámos até que a rendição ficou concluída e, assinados os recibos e comunicada para o batalhão, o oficial substituído partiu..."

 in Na Grande Guerra, Américo Olavo.

  

Antigas estruturas de "dug-out elephant", constituídas por peças de ferro canelado.

 

Abrigo de peça de Artilharia de 75mm, CEP, Foto de Arnaldo Garcês     Desenho do Capitão Menezes Ferreira, 1918, Flandres, França: Livro Impressões do CEP 1917-1918. (João Ninguém)

 

Abrigo de Artilharia 75mm. No abrigo de infantaria vê-se o aquecimento, a embalagem de corned-beef e ao fundo o parapeito. a legenda da gravura diz: Num Elefante, Capt. Menezes, França 1918.

 

Encontro com António Granjo
  

A noite de 19 de Outubro de 1921 ficou conhecida como a "Noite Sangrenta". Nela ocorreram os assassinatos do presidente do Ministério António Granjo, do fundador da República Machado Santos e do revolucionário de 5 de Outubro José Carlos da Maia.

 

No decorrer da I Grande Guerra ofereceu-se como voluntário para a frente de batalha. Sobre essa experiência, anotou:

 

"Parti de Chaves, com o 1.º Batalhão de infantaria 19, na noite de 20 para 21 de Maio de 1917, com destino a Lisboa, onde embarquei, em direcção a Brest, no dia 27 do mesmo mês." (António Granjo, A Grande Aventura, c. 1918, p. 5)


"Ali mesmo recebi a visita de António Granjo que pertencia a uma companhia estabelecida à esquerda, e que em França, para onde voluntariamente tinha vindo, dava mais exemplos do seu patriotismo e da sua bravura. No dia seguinte apareceu o Granjo com uma novidade, que dentro em pouco nos era comunicada também. A artilharia portuguesa ia bombardear o bosque de Biez com cinco mil granadas incendiárias nessa mesma noite. Logo combinámos para depois do jantar que ele me oferecia irmos assistir ao espectáculo, para o qual tomaríamos lugar num camarote de primeira ordem, de trincheira."

in Na Grande Guerra, Américo Olavo.
 

 


 

Fado do Cavanço

"Da Inglaterra, dos ingleses, dizem as piores coisas, e pelas horas calmas, para divertimento, na presença das ordenanças e quantos outros soldados, cantam à guitarra, inseparável de portugueses, fados do cavanço em que são achincalhados mesmo os mais altos comandos. "
in Na Grande Guerra, Américo Olavo.

 

Numa noite de Outono de 1917, Cunha Leal, recentemente chegado ao sector português da Flandres, ouviu o famoso «fado do cavanço» cantado ás escondidas por três soldados do CEP. Entenda-se pelo pomposamente designado Corpo Expedicionário Português, designação imitar de BEF (British Expeditionary Force), cuja sigla (CEP) os espirituosos de Lisboa traduziam por «Carneiros de Exportação Portuguesa».
 

«Nesta vida de Cavanço
A cava, como se vê,
Se os boches dão um avanço
Cava todo o C.E.P

 

Fadiga Física e Moral

 

No relatório efectuado pelo Tenente-coronel Eugénio Carlos Mardel Ferreira, em 4 de Abril de 1918, indicava que a sua 4ª Brigada de Infantaria tinha passado 98 dias seguidos nas trincheiras até 31 de Dezembro de 1917 e que quando passada para a retaguarda não tinha ficado em descanso, por para além da instrução teve de fornecer numerosos contingentes para trabalhos de enterramento do cabo de comunicações telegráficas, trabalhos de reparação de entrincheiramentos, para além de fornecer efectivos para guarnecer os postos da "Linha das Aldeias". A 7 de Fevereiro entrou novamente nas trincheiras, guarnecendo o sector de Fauquissart e ainda fornecendo diariamente grupos de trabalho, entre 250 a 350 homens em média, para o serviço de enterramento do cabo de comunicações telegráficas e para auxiliar a 4ª Companhia de Sapadores Mineiros em trabalhos de reparação de entrincheiramentos em Lavantie. O cansaço físico das tropas era tão notório que o Estado-maior da 2ª Divisão determinou a suspensão do fornecimento de homens para o enterramento do cabo.

 

O desfalque em efectivos começou com as baixas aos hospitais e ambulâncias, tanto em oficiais e praças, que ao não serem substituídos aumentavam o esforço dos que ficavam. Num processo de "bola de neve" assistiu-se a uma redução de efectivos tão grande que ao Batalhão em reserva não era dada a possibilidade de descansar ou mesmo de ter tempo para sua limpeza pessoal. A 4 de Abril de 1918 era evidente que a força física e moral das tropas tinha sido excedido. (7)

 

Muitos oficiais apresentavam um verdadeiro sentido de dever e recusavam-se a baixar ao hospital, como exemplo um caso referido no atestado escrito pelo chefe dos Serviços de Saúde, Capitão-médico Joaquim de Assunção Ferraz Júnior, em 30 de Março de 1918, que o Tenente Henrique José Rebelo Branco se recusou a sair da primeira linha até dia 9 de Abril de 1918, quando foi ferido e gazeado, tendo sido evacuado durante a Batalha. Ele apresentava o seguinte quadro clínico:

 

"...devido ao excesso de trabalho que tem tido durante o corrente mês, está sendo portador duma « surménage» física, como consequência de sucessivas noites sem dormir e da comoção produzida pelo troar quase contínuo dos canhões e rebentar das granadas em torno deste Q.G., tendo determinado perturbações do aparelho digestivo, com intolerância gástrica, hepatite, diarreia, tenesmo, e perturbações do aparelho circulatório, notando-se um desdobramento do 1º tom no foco aórtico e sopro anémico acentuado, e a acção contínua de gazes, - Em Campanha, 30 de Março de 1918 - " (8)

 

Havia a consciência que a falta de oficiais e sargentos diminuía a resistência das praças, porque estas sem o exemplo dos graduados e com o excesso de fadiga acumulada em breve ficaram prostradas.

 

Os sintomas de cansaço nas tropas que ocupavam a primeira linha era notório, começava-se a verificar que os homens apresentavam "falta de vontade para as coisas mais insignificantes" (9)

 

O BI 3 apresentava em Março de 1918 grande número de baixas às ambulâncias e hospitais, cerca de 117 praças e 6 oficiais, sem contar com os que se encontravam no gozo de licença. Mas a situação ainda piorou quando foram suspensas as concessões de licenças, provocando um aumento da deterioração da força física e moral. O BI 8 apresentava como razões para o esgotamento físico e moral a longa permanência em França, a longa permanência nas trincheiras, em grande parte no Inverno, os esforços nos trabalhos constantes de reparações das trincheiras, as chamadas diárias para ocuparem os postos de reforço durante os cinco dias em que se encontravam em reserva, a falta de conforto nos acantonamentos de descanso, como sucedeu em La Gorgue onde a ocupação das casernas foi do dobro da lotação e durante os períodos de descanso eram empregues em trabalhos de reparação do cabo de comunicações ou de entrincheiramentos. Por último, a excitação nervosa, ou comoção, produzida pelos constantes bombardeamentos.

 

No caso do BI 20, que tinha tropas vindas quase directamente de uma campanha em África e que foram enviadas para França, sem um intervalo suficiente para recuperar do paludismo.  Existia ainda um problema sanitário nos péssimos acantonamentos que esta Batalhão possuía na retaguarda.

 

Ao longo do mês de Março de 1918 os homens doentes que iam à revista de saúde aumentava de dia para dia. Apresentavam um estado depauperado, cansado e estropiado, demonstrando mais a necessidade de descanso do que de hospitalização. Os homens que baixam aos hospitais ou às ambulâncias apresentam em grande número sintomas de "astenia psicológica", um estado de stress psicológico devido à quantidade de angústias acumuladas que não conseguem superar e que tem reflexo nas defesas imunológicas do organismo, criando por consequência um "síndroma de fadiga crónica". (10)

 

Num de muitas noites que o BI 13 se manteve na 1ª Linha, sem que se previsse a situação, quando se iniciou um ataque alemão de morteiros sobre a trincheira. O bombardeamento durou mais de duas horas e quando terminou o alferes de serviço foi procurar o soldado que se encontrava de vigia naquela zona. Quando lá chegou apenas encontrou a espingarda encostada ao parapeito. Mais tarde, quando o alferes passava pela 2ª Linha encontrou  o soldado desarmado, em cabelo, com o capote em tiras, a marchar com o corpo dobrado para a frente como quem quer se abrigar de algo. De seguida "Pára. Levanta os olhos esgazeados para o ar, aponta com o dedo ao alto como se mostrasse alguma coisa, assobia numa imitação perfeita o zumbido do morteiro subindo, encolhe-se como uma bola, como um ouriço à espera, de encontro à escarpa... e de repente numa expressão trágica de pavor escacha os braços semelhando num rouquido animalesco a explosão do morteiro... e continuou assim trincheira fora...". Passados meses, junto à BASE, o soldado continuava com os mesmos sintomas, rondando em torno dos barracões, fazendo destes as suas trincheiras e assobiando como os morteiros.(24)

 

O medo levou a que alguns soldados se dirigissem ao Hospital em Ambleteuse queixando-se de dores terríveis, para a todo o custo fugirem da frente de combate. Uma noite que se esperava um ataque alemão, quando o Tenente Pina de Morais distribuía um suplemento de cartuchos, um dos seus soldados perguntou para que era aquilo e após os deitar no chão fugiu, só vindo a ser encontrado três dias depois.  Um factor que fazia aumentar o medo era o silêncio, que ao permitir meditar aumentava a consciência do perigo. 

 

O Tenente Pina de Morais afirma que um dia viu um soldado a manobrar uma metralhadora, de olhos transtornados, executando o manojo da arma com exactidão mas sem um único cartucho no tambor, apontando para os aviões inimigos que nos bombardeavam. Outra situação deu-se quando um dos mais corajosos soldados do batalhão foi encontrado todo enrolado no chão encostado às travessas das trincheiras, situação que nunca anteriormente se tinha verificado. Quando mais tarde os médicos leram a correspondência que este soldado escrevera verificaram que era do tipo de despedida e quase testamentária. (25)

 

Lord Moran, no seu livro "The Anatomy of Courage" aprofunda a questão dos efeitos psicológicos da guerra durante a Grande Guerra de 1914-1918, começando por abordar como a imaginação ajuda uns e destroi outros. A apatia em que alguns homens caíram, o olhar para o vazio e o medo inesperado, foram situações que começaram a ser observadas desde 1914. Tal como acontecia no Exército britânico o soldados portugueses também começaram a sofrer dos mesmos sintomas ao fim de algum tempo consecutivo na primeira linha. Isto colocava aos oficiais-médicos a responsabilidade de reconhecer as verdadeiras situações de embustes para fuga ao serviço na frente de combate. Sem aparente mal físico muitos apresentavam-se por problemas de quebra de moral.    

 

Para a quebra do moral em muito contribuía a monotonia da rotina diária vivida nas trincheiras. Esta invadia o estado de espírito dos homens que se encontravam ali estacionados e que por ali se mantinham por tempo indeterminado.

 

"Monotony was a form os suffering reserved for active minds, which crave food like hungry bodies" (Moran, 1945:151).

 

Esta monotonia contribuiu para que no Inverno de 1917 se verificassem os grandes motins no Exército francês. A "Entente" deparava-se à data com uma situação generalizada de a quebra do moral que precisava de ser combatida, uma vez que se estava a propagar e a tornar um dos factores que mais aumentava a vontade e a imaginação para os homens para se manterem fora das trincheiras.

 

Por outro lado começavam a aparecer com frequência sintomas psicológicos de "apatia", como uma "anestesia natural" em relação à violência física e psicológica em que os soldados se encontravam nas trincheiras. A apatia tornou-se um veículos para o isolamento mental do indivíduo e um factor para a destruição da força de vontade e capacidade de combate individual, se bem que também era uma forma de defesa contra a loucura.

 

Na época ainda não existia uma compreensão para as questões do foro mental, Sigismund Freud ainda estava a fazer nascer a Psicologia, para compreender que uma vida prolongada nas trincheiras, ou os bombardeamentos consecutivos e intensos faziam nascer o "stress de guerra", e que estes factores enquanto causas podiam minorados. Tudo o que chegava aos soldados no front era comida, agasalhos e munições, não havendo nada para se distraírem e deslocarem o seu pensamento para longe daquele local. O Exército não criava este tipo de actividades desportivas ou culturais, tendo estas ficado, em parte, à mercê de iniciativas individuais ou de organizações civis, como a Cruz Vermelha.

 

Jaime Cortesão (1919, 81) refere: "Aqui sufoca-se. Esta vida triste e monótona, longe de toda a emoção profunda que não seja a lembrança dos que estão longe, enche deste mal terrível e tediento, destruidor da vontade a que aqui se chama neura."

 

Por causa da monotonia os homens bebiam para fugir ao presente, ou criavam humor para ajudar a ridicularizar o presente e fugir ao pensamento sobre morte. A falta de objectivos, como por exemplo a obtenção de uma licença para ir a casa, tornava o presente insuportável e foi um factor que contribuiu para algumas das situações de revolta.(Moran, 1945, 152). As condições meteorológicas agressivas do Inverno de 1917 também tiveram um grande efeito na fadiga psicológica dos soldados.

 

"Winter under these conditions has a kind of petrifying effect on the mind. There is a peculiar blunting of impressions, a strange vancacy so that everything after a time is accepted passively. Men are affected very differently" (Moran, 1945, 85)

 

Os dias intermináveis do Inverno de 1917 bloqueavam o pensamento, chegando os homens a desejar que algo acontecesse. Surgiu o "tédio" como um sintoma da monotonia e não como a causa da fadiga psicológica. No final de 1917 a fadiga psicológica tinha-se espalhado por todos os exércitos da "Entente", convertendo-se como uma doença contagiosas do espírito (Moran, 1945, 153).

 

Com a permanência nas trincheiras era inevitável o enraizamento do medo na alma, derivado de meses de inactividade nas trincheiras, e que acabava por influenciar o comportamento dos homens. Era o descobrimento do perigo que ia chegando aos poucos, conforme os homens começam a aperceberem-se que não eram espectadores na guerra, mas sim actores e alvos, e que podem ser as próximas vítimas. (Moran, 1954, 30)

 

Esses pensamentos corroíam a força combativa e desmoralizavam. Quantas vezes os soldados pensavam sobre a sorte que tinham em não terem sido atingidos, mas pouco a pouco começavam a pensar que cada vez existia maior probabilidade de lhes acontecer e esta apreensão do perigo ia criando medo e destruindo a capacidade de resistência. Um oficial médico do 4º Batalhão do Regimento Black Watch, que esteve com o seu batalhão durante catorze na frente de combate em Ypres referiu:

 

"There was a feeling of tension,  a feeling of jumpiness. Not with standing the work, the men had previously sung going up to the trenches and coming back, but they gave it up; they gave up all social business, they were getting into a state of nervous exhaustion. the troops were then moved to another part of the line and  the moment they were moved you would not have known them for the same battalion" (Moran, 1945, 120)

 

A falta de descanso derivada em parte dos bombardeamentos constantes e cada vez mais poderosos, colocaram o "stress de guerra" noutro patamar. Na guerra anterior, "Guerras Napoleónicas",   o combate acontecia em corpo-a-corpo e a  poucas dezenas de metros podia-se estar em protecção ou a descansar. Nesta Grande Guerra o desgaste criado por se estar constantemente na zona de combate levou a que muitos dos homens capazes para combater chegassem a um ponto em que psicologicamente quebravam. Não existia um momento de descanso, não existia um momento de paz, não havia um local verdadeiramente seguro na zona de combate. (Moran, 1945, 75)

 

Nas trincheiras da Flandres os homens foram consumindo a sua força de vontade numa luta contra as circunstâncias que os cercavam. Quando os bombardeamento se tornavam mais intensos e se prolongavam, os homens deixavam de pensar no que poderia estar a acontecer aos companheiros e depois acabavam por deixar de pensar no que lhes estava acontecer. Com as explosões que os rodeavam acabavam por bloquear totalmente o pensamento, ficavam em estado de choque sem capacidade de combate. O que mais abalava os homens nas trincheiras era a incapacidade de controlar o perigo em que se encontravam, ficando à mercê dos fogo de artilharia inimiga sem qualquer capacidade de resposta directa, o que produzia uma sensação de indignidade na forma de morrer e à destruição da força de vontade individual.  Um homem abalado colocado na retaguarda em descanso recuperava a sua capacidade de combate, mas acumulavam a fadiga psicológica do "stress de guerra" que lhe ia reduzindo a sua capacidade individual de combate. (Moran, 1954, 69)

 

A força de vontade individual, a coragem, era o "capital" dos homens nas trincheiras, o qual se encontrava sempre a ser consumido durante o tempo que ali permaneciam. O Exército deveria ter entendido que o gasto deveria ter sido criterioso em cada "cêntimo" que gastava, com o cuidado de não levar a coragem dos seus homens à "falência", porque uma vez esgotada a coragem um soldado está acabado. A utilização do descanso físico e os sucessos militares poderiam ter sido utilizados para recuperar esse "capital".

 

 

Licenças de Campanha

 

Todos esperavam que se efectuasse uma substituição de tropas ao fim de um ano, à semelhança do que acontecia com as forças expedicionárias que foram enviadas para África e como tinha sido publicado no Decreto n.º 3959, de 30/03/1918, que ficou conhecido com a designação francesa de roullement.

 

Na prática, muitos oficias que se encontravam em Portugal no gozo de licença de campanha aproveitaram este Decreto para obter a sua desmobilização, que acabou por ser concedida sem o Estado garantir as substituições em campanha. (28)

 

 Esta situação agravou em muito a situação moral do CEP, reforçado negativamente pelo conhecimento de notícias publicadas em Fevereiro de 1918, num jornal de Lisboa.

 

“Nenhum outro exército, a não ser o nosso, inflige aos seus soldados o suplício intraduzível de lhes dizer que estão ali para sempre até que um tiro, um estilhaço ou uma tuberculose os tire dessa guerra, cuja duração ninguém pode prever”(29)

 

A redução de efectivos foi tão elevado que levou ao esgotamento dos Depósitos das diferentes Armas, o que levou à execução de uma contínua transferência de oficiais e praças entre unidades para manter um equilíbrio de efectivos entre unidades, mas com uma consequência extremamente grave para a manutenção do “espírito de corpo”. Se a grande parte da falta de oficiais se devia às licenças de campanha, para as praças a principal razão ligava-se com baixas ao hospital, apenas porque eram diminutas as licenças de campanha que lhe eram concedidas.

 

Outra situação que implicava revolta era a possibilidade de alguns militares, geralmente oficiais, conseguiam vir a Portugal de comboio para o gozo da sua licença de campanha. Isto encurtava substancialmente o tempo de viagem, como alternativa ao transporte naval, que não só era mais demorado, mais perigoso e dependia das disponibilidades dos dois únicos transportes regulares com Brest, o “NRP Pedro Nunes” e o “NRP Gil Eanes”.

 

Foi um exemplo documentado da utilização desta alternativa de transporte aconteceu com o Alferes Humberto de Almeida, Batalhão de Infantaria 7, que nos conta da sua viagem iniciada em Bethune, até Portugal.

 

Daí partiu em direcção a Paris, tendo passado nas Estações de St. Paul, Abeville e parado em Amiens onde permaneceu durante duas horas. Ao longo do trajecto faz referência aos inúmeros comboios militares que no caminho se foram cruzando com ele. De Amiens seguiu para a Gare du Nord (Paris), onde pernoitou.

 

No dia seguinte tomou o comboio na Gare de Orsay (Paris) que o levou até Espanha. O comboio levou toda a noite até chegar a Bayonne onde parou por momentos. Depois passou por Biarritz e pela tarde estava em Hendaia (França), última estação de comboio em França. Aqui o Alferes Humberto de Almeida teve de tirar a farda e vestir-se à civil, por causa da "neuralidad de nuestros hermanos". 

 

O comboio seguiu para Irun (Espanha), passou por San Sebastian, Medina e chegou a Salamanca onde parou por algum tempo. Depois seguiu para a fronteira portuguesa e entrou em Portugal por Vilar Formoso. Terá feito de seguida o trajecto Vilar Formoso, Entroncamento, Leiria. Em quatro dias era possível vir da Flandres até casa de comboio, mas esta possibilidade estava muito restringida pela neutralidade de Espanha. (30)

 

As estatísticas revelam que dos 1.912 oficiais com licença de campanha concedidas, 822 não regressaram a França e dos 25 oficiais chamados a Portugal, 17 não regressaram. E contrapartida das 519 praças que obtiveram licença de campanha praticamente todas regressaram findo o período de licença.(31)

 

Estes números levaram à criação no CEP de uma Escola Preparatória de Oficiais Milicianos”, para colmatar a falta de oficiais nos batalhões de infantaria, que recrutaram os seus alunos entra as praças do CEP pela condição de cultura geral que apresentavam, obtendo a reposição de 78 alferes de infantaria. (32)


 

A Gíria do CEP

 

 

Alicate

 Soldado de infantaria de Transmissões

Avenida Afonso Costa

Terra de Ninguém

Avenida dos Alferes

1ª Linha das Trincheiras

Barris de almude

 Projéctil de artilharia grande 

Boche

 Soldado alemão

Boletim de Operações e Informações

 Almocreve das petas

Cachapim

 Soldados que conseguiram ser transferidos para a retaguarda, ou que tendo ordem de ir para as trincheiras nunca lá chegaram

Cavanço

 Fuga para a retaguarda

Comer graxa

 levar com estilhaços (termo muito pouco usado)

Copos de meio litro

 Projéctil de artilharia pequeno

Cortar prego

 Ter medo

Elefante

Abrigo metálico (chapa de ferro ondulado, em forma de arco)

Estaminets

 lojas (nos acantonamentos os melhores estaminets eram as mess de ofciais e de sargentos)

Front

 Zona de combate

Front line

 linha da frente, também denominada “A Line”

Garrafas de litro

 Projéctil de artilharia médio

Lanzudo

 Soldado português

Língua do pica-pau

Sinais de Morse

Linha das Aldeias

 terceira linha das trincheiras (Village Line)

Menino

 Projéctil de morteiro ligeiro

Mobília

 Equipamento individual do soldado

Museu

 Abrigo do comando do Batalhão

Palmípedes

 Soldados de estado-maior ou que conseguiam não ser enviados para as trincheiras

Poilus

 Soldados franceses

Porco

 Projéctil de morteiro pesado

QG3

 "Quartel General da Terceira Divisão", nome dado à papelaria Faës Flageollet em Aire sur la Lys, na Flandres.

Recóca

 Serviços de apoio na primeira linha, cozinheiros, tratadores de gado, condutores, etc. longe do parapeito

Salchichas

 Balões de observação (drachens)

SOS

 Pedido de artilharia de apoio

Terra de ninguém

 Espaço entre as primeiras linhas (no man's land)

Tommies

 Soldados ingleses

Trinchas

 Soldados portugueses que se encontram na 1ª Linha

Very light

Foguete de luz branca para iluminação nocturna

Zacarias

 Sniper inimigo

 

 

Os Lanzudos

 

No começo do Inverno de 1917 foram distribuídos aos soldados em França, pelicos e ceifões alentejanos. Houve, no entanto, alguns soldados que consideraram mas elegante usarem os agasalhos com o pêlo de carneiro virado para fora, o que lhes dava um aspecto curiosíssimo.

 

A primeira vez que os alemães viram circular os nossos soldados pelas trincheiras com aquele aspecto peludo, juntaram-se numa fileira junto ao parapeito a observar o espectáculo com muito espanto. Foi então que começaram a surgir as gargalhadas de desdém e a ouvirem-se largos "més...".

 

Não faltou a resposta bem portuguesa ao vexamento que assistiam: _ "Carneiro será o teu pai, meu grande filho da ..." (33)

 

Links

http://www.medailles1914-1918.fr/portugal-commemo.html

http://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=KdeIBRluoAw#t=6s

 

Notas

 

12- Almeida(1919), pp.83-86.

13- Almeida(1919), pp. 87-92.

14- Almeida(1919), pp. 69-74.

15- Olavo(1919), p.250.

16- Olavo(1919), pp. 249-262.

17- Godinho(2010), p.51

18- Martins(1934a), p 270

19- idem

20- ibidem

21- Morais(1919), p.68

22- Morais(1919), p.69

23- Morais(1919), pp. 95-6

24- Morais(1919), p.98

25- Morais(1919), pp. 105-11

26- Malheiro(1925), pp.448-9.

27- Malheiro(1925), pp. 22-3

28 - Martins, 1934a, p.178

29 - Martins, 1934a, p. 298

30 - Almeida, 1919, pp. 83-92

31 - Martins, 1934a, p.298

32 - Martins, 1934a, p.299

33- Brun(1919), p. 57

34 -Mea(1997), p.46

35 -Mea(1997), p.47

36 -Mea(1997), p.49

 

 

Bibliografia

  • Marques, Rafael(2000), "Cruz Vermelha Portuguesa", Coimbra, ed.,Quarteto Editora. (ISBN: 972-8535-29-5)

  •  Ilustração Portuguesa, (1919), Série II, 30 Junho de 1919, n.º 697, Lisboa, O Século, HML

  •  Martins, Ferreira (1934a), "Portugal na Grande Guerra", Vol. I, Lisboa, 1ª ed., Empresa Editorial Ática

  •  Martins, Ferreira (1934b), "Portugal na Grande Guerra", Vol. II, Lisboa, 1ª ed., Empresa Editorial Ática

  •  Amaral, Ferreira do (1922), "A Mentira da Flandres e o Medo", Lisboa, 4ª ed., Editora J. Rodrigues & C.

  • Cortesão, Jaime (1919), "Memórias da Grande Guerra, (1916-1919)", Porto, 3ª ed., Edição da Renascença Portuguesa.

  • Almeida, Humberto de(1919), "Memórias dum Expedicionário a França, com a 2ª Brigada d'Infantaria, 1917-1918", s.e., Porto, Tipografia Sequeira.

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  • Moran, Lord (1945), "The Anatomy of Courage", London, ed.,Constable & Robinson Ltd, (2007), (ISBN:978-00-78671-899-3)

  • Malheiro, Alexandre (1925), "Da Flandres ao Hanover e Mecklenburg: (Notas dum Prisioneiro), Lisboa, 2ª ed, Fernandes Editores.

  • Mardel, Eugénio (1923), "A "Brigada do Minho" na Flandres, (o 9 de Abril), Subsídios para a História da 4ª Brigada do CEP", s.e., Lisboa, Serviços Gráficos do Exército.

  • Magno, David (1921), "Livro da Guerra de Portugal na Flandres, Volume II", s.e., Porto, Companhia Portuguesa Editora.

  • Brun, André (1919), "A Malta das Trincheiras, Migalhas da Grande Guerra (1917-1918)", 2ª ed., Lisboa, Guimarães & C.ª.

  • Mea, Elvira de Azevedo e Inácio Steinhardt, (1997), "Ben-Rosh: Biografia do Capitão Barros Bastos, o apóstolo dos Marranos", Porto, Edições Afrontamento, (ISBN: 972-36-0436-1)

 

 

 

 

 

     

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